A decisão de monetizar conteúdos que mostram crianças cria um atalho perigoso entre atenção, dinheiro e vulnerabilidade. Quando cada visualização vira centavos e cada engajamento alimenta um algoritmo faminto, a infância passa a ser tratada como ativo. Do lado de fora das telas, pais, tutores e produtores são incentivados a filmar mais, revelar mais, expor mais. Do lado de dentro, sistemas de recomendação aprendem rapidamente que a imagem de uma criança costuma reter público — e, portanto, receita. É exatamente essa economia da atenção aplicada à infância que a Rede Social Soberan defende banir: plataformas não deveriam monetizar conteúdos que apresentam ou expõem crianças, ponto.

Não é uma posição moralista; é uma posição de risco calculado. As principais organizações de proteção à infância e reguladores já demonstraram os danos de um sistema que cruza publicidade, dados pessoais e exposição de menores. Em 2019, o Google/YouTube pagou multa recorde por violações à COPPA ao rastrear crianças para anúncios — um caso que obrigou a plataforma a restringir anúncios personalizados e admitir “impacto significativo” nos negócios de canais voltados ao público infantil. (Federal Trade Commission, The Verge)

Nos anos seguintes, o problema não desapareceu: apenas mudou de feição. A visibilidade de crianças segue gerando valor, mesmo quando a plataforma proíbe ads personalizados ou exige 18+ para certos programas de remuneração. Estudo e reportagens recentes mostram que o ecossistema de redes ainda conecta predadores e incentiva redes ilícitas, enquanto a coleta de dados sobre crianças e marketing digital mantém poderes de persuasão e segmentação preocupantes. A investigação do Wall Street Journal demonstrou que o Instagram “conectava” uma vasta rede de pedófilos; o relatório de políticas da própria Meta reconhece que mesmo imagens “inocentes” de nudez infantil são removidas devido ao risco de reuso e abuso; e a UNICEF há anos alerta para a exploração econômica, a perda de privacidade e os impactos mentais do marketing digital dirigido a crianças. (House Committee on Energy and Commerce, transparency.meta.com, UNICEF)

A dimensão do problema, aliás, é global e crescente. A WeProtect Global Alliance estimou em 2024 que mais de 300 milhões de crianças sofreram algum impacto por exploração e abuso sexual online em 12 meses, e a NCMEC reportou em 2024 um salto de 1.325% em denúncias envolvendo conteúdo gerado por IA — um vetor que acelera a produção de imagens sintéticas e pode saturar sistemas de denúncia. Em 2025, autoridades americanas e britânicas também soaram o alarme para o avanço da sextorsão contra menores. Nenhuma plataforma deveria, em meio a esse cenário, extrair lucro direto da exposição de crianças. (WeProtect Global Alliance, missingkids.org, The Guardian)

Há quem argumente que “a monetização oficial já é proibida para menores” em vários programas. É meia verdade. TikTok, Instagram e Facebook exigem 18+ para monetização nativa (Creator Rewards, Subscriptions, Stars). Contudo, a receita segue fluindo por rotas adyacentes: acordos de marcas feitos fora do marketplace oficial, lojas próprias, lives patrocinadas pelos pais, links de afiliados. Além disso, contas de adultos podem monetizar vídeos nos quais crianças aparecem, mantendo o incentivo de produção — e, portanto, o apetite algorítmico por esse tipo de conteúdo. (Suporte TikTok, Facebook, Ajuda do Instagram)

Os desajustes regulatórios ajudam a explicar o porquê. A França foi pioneira ao proteger “crianças influenciadoras”, determinando reserva de rendimentos e direito ao esquecimento; nos EUA, estados como Illinois (2024) e Minnesota (2025) criaram regras para compensar menores e limitar sua participação em vídeos monetizados. São avanços, mas atuam depois do fato: admitem a monetização e tentam reduzir danos. Falta atacar a fonte — a monetização do conteúdo em si — quando envolve a imagem e a intimidade de crianças. (The Library of Congress, quicktakes.loeb.com, CBS News)

Não é só sobre dinheiro. É sobre dados. O relatório “Who Knows What About Me?” da Children’s Commissioner (Inglaterra) mostrou como a pegada de dados de uma criança se forma cedo, incluindo o que os pais postam (o chamado sharenting), e como isso pode moldar a vida futura daquele indivíduo. A UNICEF, em diversos documentos, detalha a capacidade de marketing persuasivo online e seus impactos sobre saúde mental, hábitos e escolhas. Monetização cria a demanda que puxa a engrenagem de captação de dados e segmentação — e as plataformas, mesmo quando limitam anúncios em “conteúdo infantil”, ainda se beneficiam do tempo de tela e da mineração comportamental do que é visto, curtido, pulado. (childrenscommissioner.gov.uk, UNICEF)

Há também o elo entre exposição e risco. A pesquisa acadêmica recente vem documentando o universo dos “family vlogs” e “kidfluencers”: efeitos psicológicos, invasão de privacidade, inversão de papéis de cuidado e, em casos extremos, abuso travestido de entretenimento. A literatura jurídica e de políticas públicas nos EUA e na Europa começa a tratar isso como trabalho infantil digital, com necessidade de salvaguardas similares às da indústria do entretenimento tradicional — mas ainda sem a espinha dorsal: sem monetização, o incentivo à superexposição cai. (americanbar.org, repository.law.umich.edu, cjil.uchicago.edu, pdxscholar.library.pdx.edu)

A régua regulatória internacional se move, devagar. O Reino Unido aprovou o Online Safety Act, com obrigações robustas de proteção a crianças, e está publicando códigos de proteção específicos; a União Europeia avança com o DSA e pressiona por avaliações de risco sistêmico. Esses marcos vão na direção certa, mas permanecem agnósticos à regra simples: conteúdo que apresenta crianças não deve gerar receita — nem por anúncios contextuais, nem por repartição de receitas de visualizações, nem por tips nativos. (GOV.UK, whitecase.com)

A posição da Soberan
Como rede social brasileira comprometida com soberania de dados e proteção integral da infância, a Soberan sustenta um conjunto de princípios que poderíamos resumir em três eixos: desmonetização, desengajamento e descompressão de dados.

Desmonetização significa proibir publicidade, pagamento por visualizações, tips e parcerias comerciais em qualquer conteúdo que apresente crianças — independentemente de haver finalidade “familiar”, “educacional” ou “entretenimento”. Isso inclui modelos de divisão de receita e revenue share por anúncios programáticos, inclusive os não personalizados, pois o dano decorre da incentivação econômica da exposição. Não se trata de impedir pais de registrarem memórias; trata-se de impedir que o mercado capture essas memórias como inventário publicitário.

Desengajamento impõe limites técnicos: reduzir recomendações amplas de vídeos/fotos com crianças para usuários sem vínculos prévios, retirar esse conteúdo de “tendências” globais, bloquear auto-play em sequência, desativar downloads e não ranquear alto materiais cujo atrativo seja a presença de menores. Isso não é censura: é higiene algorítmica para impedir ciclos de viralização que escapam ao controle das famílias — e que criam demanda para o próximo vídeo mais “aberto”, mais “íntimo”, mais “rentável”.

Descompressão de dados exige minimizar coleta, desligar rastreamento comportamental e não perfilar interações com conteúdo que apresenta crianças. A regra é simples: não há justificativa comercial para minerar o comportamento de audiências sobre vídeos/fotos com menores. As recomendações devem funcionar por consentimento explícito, círculos sociais e contextos seguros, não por inferências opacas.

Esses três eixos conversam com o acúmulo de evidências e com as políticas existentes. O caso YouTube/COPPA mostrou que publicidade comportamental em conteúdo infantil é nociva; a experiência europeia e britânica reforça deveres reforçados de proteção; os números mais recentes de NCMEC e das polícias alertam para novos vetores de risco (IA generativa, sextorsão). Se o contexto piora, a resposta deve ser mais clara, não mais criativa: sem monetização de conteúdo que apresenta crianças. (Federal Trade Commission, GOV.UK, missingkids.org, The Guardian)

“E o conteúdo educacional?”
Museus, escolas, meios públicos e instituições culturais produzem material com participação de crianças e relevância social. O caminho, aqui, passa por licenças públicas, patrocínios institucionais e fundos dedicados, não por anúncios dinâmicos e repasses por visualização. Conteúdo editorial/jornalístico que contextualiza imagens de crianças em pautas de interesse público também merece tratamento específico, auditável, sem receita por engajamento.

“E se a plataforma já proíbe menores nos programas de monetização?”
Ótimo — mas é insuficiente. A indústria aprendeu a contornar o gargalo via acordos externos, lojas e merch. Cabe às plataformas desincentivar o formato em si: ao remover a dimensão econômica, reduzem-se o volume, a pressão por constância, o oversharing parental e o apetite dos recomendadores. Onde a lei permite monetizar, a regra de produto pode (e deve) ir além do mínimo legal. (Suporte TikTok, Facebook)

“Isso não penaliza criadores honestos?”
A economia da atenção premia outliers e pune o cuidado. Ao remunerar a presença de crianças na tela, as plataformas deslocam o risco para quem tem menos agência: os próprios menores. Reguladores já entenderam isso — França, Illinois e Minnesota criaram salvaguardas financeiras e limites. O próximo passo é óbvio: plataformas não devem ganhar — nem fazer ninguém ganhar — dinheiro com a exposição de crianças. (The Library of Congress, quicktakes.loeb.com, CBS News)

Conclusão: um padrão para a próxima década
Se quisermos romper o ciclo de incentivos que mercantiliza a infância, a regra precisa caber em uma linha e valer para todos: conteúdos que apresentam crianças não serão monetizados. O resto — auditoria, verificação etária, revisão humana, relatórios de transparência — são camadas necessárias, mas incapazes de neutralizar o incentivo central quando o dinheiro segue sobre a mesa. À luz do que mostram casos de privacidade (YouTube/COPPA), relatórios de risco (WeProtect, UNICEF), dados de abuso e sextorsão (NCMEC, autoridades) e o endurecimento regulatório (Reino Unido, UE), manter a monetização de conteúdos com menores é insistir em um modelo de negócio que transfere riscos enormes para quem não pode consentir. (Federal Trade Commission, WeProtect Global Alliance, UNICEF, The Guardian, GOV.UK)

A Soberan assume esta posição como compromisso público: proteger a infância começa por desfinanceirizar a exposição. Que as plataformas que realmente acreditam em segurança e responsabilidade façam o mesmo — e que anunciantes, marcas e criadores entendam o recado. A infância não é inventário publicitário.

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