“Democracia” não é um troféu pendurado num ranking; é prática cotidiana: quem vota, quanto o voto vale, como as instituições protegem esse voto e como punem quem tenta sabotá-lo. À luz desses critérios — representatividade do sufrágio, igualdade de peso do voto e capacidade de defesa institucional — o Brasil opera, hoje, com mecanismos mais robustos do que os Estados Unidos. Os grandes índices internacionais seguem vendo os EUA à frente em “liberdades civis” e “pluralismo”; mas quando descemos ao chão da urna, a realidade inverte o mapa.

O que os rankings mostram — e o que eles deixam escapar

Os termômetros globais de democracia continuam a favorecer os EUA. No Freedom in the World 2025, os Estados Unidos aparecem com 84/100 pontos (“livre”), enquanto o Brasil soma 72/100 (“livre”). Já o Democracy Index da Economist mantém os EUA na categoria de “democracia imperfeita”, mas ainda acima do Brasil, que segue como “regime híbrido/democracia imperfeita” dependendo do recorte. Esses painéis são úteis para comparar liberdades, mas carregam um viés pró-instituições anglo-saxãs e pouco capturam distorsões estruturais de representatividade (Colégio Eleitoral, Senado desproporcional, gerrymandering), que deformam a igualdade do voto — a pedra angular da democracia.

Quem vota — e quanto o voto pesa

Participação. No Brasil, o segundo turno de 2022 levou 79,41% do eleitorado às urnas; a abstenção ficou em 20,59%. É mais gente votando, e de forma distribuída em todo o território — em parte por causa do voto obrigatório, mas também por facilidades logísticas (urna eletrônica próxima de casa, votação dominical, biometria). Já nos EUA, a eleição presidencial de 2024 registrou 65,3% de participação entre cidadãos com 18+ anos, segundo o U.S. Census Bureau. A diferença não é trivially “cultural”: ela se liga a barreiras jurídico-administrativas (registro prévio, dia útil de votação, filas extensas) que pesam mais sobre pobres e minorias.

Enfranchisement vs. disenfranchisement. Há, ainda, o apartheid eleitoral dos EUA: leis estaduais que proíbem o voto de pessoas com condenações criminais. Em 2024, cerca de 4,0 milhões de norte-americanos estavam legalmente impedidos de votar por uma condenação — uma cifra que segue desproporcionalmente concentrada entre negros e latinos. No Brasil, a inelegibilidade alcança alvos restritos e temporários; não existe uma política sistêmica de banimento de eleitores em massa. A igualdade cívica, nesse quesito, pende a favor de Brasília.

Peso do voto. A arquitetura eleitoral americana admite que um candidato à Casa Branca perca o voto popular e vença no Colégio Eleitoral, algo visto em 2000 e 2016 — distorção que pode se repetir sempre que o mapa distribui votos desigualmente. No Senado, habitantes de estados pouco populosos valem múltiplos de um eleitor de Califórnia ou Texas, ferindo o princípio “uma pessoa, um voto”. Some-se a isso o gerrymandering partidário em distritos para a Câmara — assunto que, desde Rucho v. Common Cause (2019), a Suprema Corte declarou “não justiciável” em âmbito federal. É a legalização do desenho viciado do mapa, com impactos diretos sobre representação e políticas públicas.

Quem conta (e defende) os votos

Gestão eleitoral. O Brasil tem um órgão nacional independente, o TSE, que normatiza, executa, audita e julga a eleição em todo o país. A padronização de regras, prazos e tecnologia reduz margem para caos administrativo e contestações ad hoc — e foi decisiva para a rapidez e a segurança na totalização de 2022, inclusive com proclamação célere do resultado e diplomação do vencedor. Nos EUA, o processo é fragmentado por 50 estados e milhares de condados, com equipamentos, cédulas e regras diferentes; isso torna o terreno fértil para litigância e narrativas de fraude — ainda que não haja prova sistêmica de fraude. A centralização profissional brasileira é, aqui, um ativo democrático subestimado.

Direitos sob ataque. Desde Shelby County v. Holder (2013), os EUA desmontaram o “preclearance” do Voting Rights Act — a obrigação de certos estados submeterem mudanças eleitorais ao crivo federal. Sem esse guarda-chuva, uma torrente de leis estaduais restritivas avançou, sobretudo no Sul; e, quando chegam à Suprema Corte, a maioria conservadora vem se esquivando do mérito. O resultado concreto não é só debate acadêmico: são menos locais de votação em bairros de minoria, exigências documentais custosas, purgas de listas e limites ao voto por correio. É erosão procedimental da cidadania.

Resiliência institucional após intentonas golpistas

Comparar 6 de janeiro (EUA) e 8 de janeiro (Brasil) não é exercício de torcida; é medir resposta institucional. No Brasil, TSE, STF e forças de segurança reagiram rápido: restabeleceram a ordem, isolaram financiadores, processaram executores e autoridades coniventes, e reforçaram as salvaguardas eleitorais. O recado foi: não há prêmio para sabotador. Nos EUA, houve processamento penal de centenas de invasores; porém, o sistema político reintroduziu ambiguidade com indultos e comutações em massa ligados ao 6/1, sinalizando tolerância variável com crimes contra a ordem constitucional. Democracias maduras punem o ataque às urnas sem piscar.

Esfera pública: liberdade não basta sem pluralidade real

No Índice de Liberdade de Imprensa 2025, os EUA aparecem à frente do Brasil, mas ambos degringolaram em segurança de jornalistas, assédio judicial e polarização. A ressalva importa: o ambiente informacional americano é mais forte em proteção jurídica, mas padece de concentração econômica e ecossistemas paralelos de desinformação. No Brasil, a profissionalização jornalística e o escrutínio público sobre plataformas avançaram; o desafio é blindar repórteres e comunicadores fora dos grandes centros e reduzir captura econômica local. Numa democracia, liberdade de imprensa é condição necessária — não suficiente — para representação.

O que significa “ser mais democrático” — e por que isso importa agora

Democracia é procedimento e substância. Procedimento: as regras que convertem vontade popular em governo — registro acessível, votação ampla, contagem confiável, fiscalização independente e punição de quem as viola. Substância: a igualdade política real que impede que desenho institucional converta minorias territoriais em maiorias de poder. Na fotografia de 2022–2025, o Brasil entrega — com todos os seus defeitos — maior inclusão eleitoral, peso mais igual do voto e defesa mais rápida da ordem democrática quando atacada. Os EUA preservam ganhos históricos em liberdades, mas aceitam, por desenho e por decisão judicial, atalhos antidemocráticos que comprimem a vontade do eleitorado.

Não é uma disputa de autoestima nacional. É um alerta comparado: sem tratar a mecânica do voto, rankings não salvam democracia nenhuma. O Brasil mostra que dá para combinar tecnologia eleitoral auditável, administração centralizada, participação massiva e responsabilização de golpistas — e, com isso, proteger a soberania popular. Os EUA mostram que um país pode manter credenciais liberais e, ainda assim, abrir corredores para a minoria governar sobre a maioria. Entre listas e slogans, importa o básico: cada cidadão conta, e cada voto deve pesar igual.

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