Netanyahu “perdeu a razão e a humanidade”

A política externa italiana: Crosetto compara Netanyahu a Putin e acena com sanções

A política externa italiana entrou em ebulição após uma entrevista em que o ministro da Defesa, Guido Crosetto, afirmou que o governo de Benjamin Netanyahu “perdeu a razão e a humanidade” na guerra de Gaza e, no mesmo movimento, comparou os métodos do premiê israelense aos de Vladimir Putin na Ucrânia. O ministro também sinalizou que Roma pode avaliar sanções, rompendo um tabu dentro de uma coalizão de direita que, desde 2022, vinha equilibrando solidariedade a Israel com críticas pontuais à condução da guerra. As declarações foram dadas à La Stampa e rapidamente repercutiram na imprensa italiana e internacional, tornando-se o mais duro recado público de um membro do gabinete Meloni desde 7/10.

O que, exatamente, Crosetto disse — e por que isso importa

Na entrevista, Crosetto classificou como “inaceitável” o que ocorre em Gaza, defendeu que é preciso “obrigar Netanyahu a raciocinar” e, ao traçar paralelos com Moscou, afirmou que os métodos de Netanyahu “perigosamente se assemelham” aos de Putin. A comparação tem peso simbólico: a Itália é uma das vozes mais firmes da UE no apoio à Ucrânia — e a equiparação de Israel à Rússia aciona um gatilho moral e diplomático de alto impacto dentro do próprio governo.

A fala não surgiu num vácuo. Em 28/05/2025, o chanceler Antonio Tajani já havia endurecido o tom, pedindo o fim imediato da ofensiva israelense, o respeito ao direito humanitário e alertando contra uma “Vietnã” em Gaza — um diagnóstico que prenunciava a guinada do discurso oficial italiano.

O que Roma pode fazer sozinha — e o que depende de Bruxelas

Crosetto acenou à palavra “sanções”, mas esse terreno na União Europeia é minado por regras. Sanções europeias (viagens, congelamento de ativos, proibições setoriais) exigem unanimidade no Conselho — qualquer dissenso trava a adoção de medidas em bloco. A Itália, portanto, não pode, sozinha, “criar” sanções da UE contra Israel; pode, no máximo, adotar medidas nacionais (como rever licenças de exportação de defesa, restringir contratos públicos e cooperações técnicas) e defender um regime europeu no Conselho, onde todos os 27 precisam concordar.

No plano doméstico, Roma já vinha modulando o dossiê de armamentos. O governo informou que não aprovou novas licenças de exportação de armas para Israel após 7/10, ainda que remessas sob contratos anteriores tenham continuado — um equilíbrio jurídico entre a lei italiana 185/1990, o Posicionamento Comum da UE e o Tratado de Comércio de Armas. Dados e auditorias independentes mostraram exportações de milhões de euros no fim de 2023, apesar do travamento de novas licenças, evidenciando que um “embargo político” não zera automaticamente as saídas já autorizadas.

Para dimensionar o impacto potencial de uma suspensão total, vale um número de referência: em 2019–2023, a Itália respondeu por 0,9% das importações israelenses de armamentos de grande porte (helicópteros leves e canhões navais, sobretudo). Não é um volume capaz, sozinho, de estrangular a máquina de guerra israelense, mas um gesto italiano tem peso político e de sinalização para o consenso europeu.

Meloni, Crosetto e a coalizão: fissuras ou coreografia?

Crosetto não é uma “voz dissidente” na planície; é cofundador do Fratelli d’Italia, pilar do governo Meloni, e ministro com alta estatura política. Ele já vinha combinando linha-dura pró-Ucrânia com uma leitura crítica da evolução da guerra em Gaza e do custo humanitário do conflito. Seu capital político o autoriza a dizer o que outros no gabinete preferem sussurrar — e torna suas palavras um termômetro de até onde o governo pretende ir no reequilíbrio da posição italiana.

A coreografia recente sugere divisão funcional de papéis: Tajani “institucionaliza” a crítica no Parlamento, Crosetto oferece a frase de choque que abre a janela do possível (comparar Netanyahu a Putin), e Meloni preserva a margem de manobra entre aliados euro-atlânticos. O resultado é a transformação do debate doméstico: deixou de ser “se” criticar Israel para tornar-se “quanto” e “como” condicionar a relação bilateral — e em que fórum (nacional ou europeu) acionar medidas.

Rotas de sanção: do plausível ao provável

Endurecer o embargo administrativo: consolidar, em ato público e rastreável, a suspensão de todas as licenças remanescentes de defesa para Israel, além de vetar novas autorizações até que critérios de direito humanitário sejam verificados por avaliações independentes. Há precedentes italianos para travas administrativas mesmo sem um pacote europeu formal.

Pressionar por sanções da UE a indivíduos: abrir debate para incluir pessoas físicas ligadas a abusos graves no regime europeu de sanções globais de direitos humanos (o “Magnitsky” da UE). Essa via demanda unanimidade, mas o simples patrocínio formal por Roma mudaria o eixo do debate em Bruxelas.

Medidas financeiras e de contratos: congelar temporariamente acordos de P&D de duplo uso, rever participações em feiras e consórcios, e postergar memorandos setoriais (energia, inovação) — instrumentos que um Estado pode calibrar nacionalmente, enquanto negocia na UE. (Sobre o pano de fundo, a UE tem dezenas de regimes e costuma acumular “caixas de ferramentas” sob o guarda-chuva das “medidas restritivas”.)

O efeito dominó europeu — e o lugar da Itália

A unanimidade segue sendo o calcanhar de Aquiles da política externa europeia; já paralisou sanções em outras crises e obriga quem quer agir a montar coalizões de voluntários ou “descer a escada” para medidas nacionais. Se Roma endurecer sozinha, força o debate em Bruxelas, mas corre o risco de isolamento; se ficar apenas no discurso, perde o momento em que Paris, Madri e outras capitais testam músculos geopolíticos. A crítica crescente à falta de coerência e execução do regime de sanções da UE adiciona urgência a uma estratégia italiana sólida, com metas, cronograma e verificação.

E Israel? A resposta provável

Do lado israelense, a comparação com Putin é vista como ultrajante por governo e aliados internos de Netanyahu, e tende a ser usada para mobilizar apoio doméstico contra a “hipocrisia europeia”. Ainda assim, o que mais preocupa Jerusalém não é a retórica, mas a tradução prática: suspensão de peças, atrasos em manutenção, restrições de P&D e, sobretudo, o risco de um precedente jurídico na UE que abra o caminho para sanções personalizadas. É nesse tabuleiro que a fala de Crosetto deixa de ser um soundbite e vira alavanca.

A hora de escolher: coerência, custo e consequência

Crosetto puxou o elástico até quase o limite: associou a conduta de Israel ao padrão russo que a Itália combateu na Ucrânia. Fez isso num governo que precisa do lastro atlanticista, mas que lê o custo político e humanitário da guerra de Gaza como insustentável. Se Roma parar na beira da piscina, a entrevista virará espuma. Se der o passo, inicia um novo ciclo europeu sobre Israel — com a Itália, ironicamente, guiando a discussão de condicionalidades que a própria UE vem evitando por anos.

O timing joga a favor de uma decisão: a pressão pública interna cresceu (com protestos e queda de confiança na gestão da guerra), a diplomacia italiana já reconheceu que a estratégia atual “não funciona” e a máquina europeia, embora lenta, está mais aberta a medidas calibradas. No fim, a questão é menos “sanções, sim ou não?” e mais “qual arquitetura de responsabilização a Itália quer patrocinar” — e com que compromissos verificáveis. Crosetto já respondeu, com uma comparação que dispensou eufemismos.

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